sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

SURPLUS

Surplus (2003) é um documentário sueco de 52 minutos feito para a TV pública daquele país e demorou três anos sendo realizado. Foi dirigido pelo cineasta Erik Gandini que gravou na Índia, EUA, Cuba, Hungria, Itália e na própria Suécia em suporte digital e película. O filme discute a cultura do consumo e seus efeitos ambientais, econômicos e sociais. Em seu aspecto formal, possui muitas das características constituintes do que comumente se chama de linguagem do videoclipe, tais como: imagens estilizadas e virtuosísticas, uso intenso de músicas, ênfase no sentimento e na emoção, centralidade no ritmo, montagem fragmentada e descontínua, manipulação e inversão temporal (as câmeras lentas, os movimentos de trás para diante) e citação a outros estilos audiovisuais.
O ativismo político contra-ataca Imagens do movimento anti-globalização em Gênova em 2001. Jovens enfrentam a polícia nas ruas. Ouvimos o discurso de Fidel contra a sociedade de consumo e a favor de um mundo melhor. Corta para o ex-primeiro ministro italiano Silvio Berlusconi acusando os manifestantes de promoverem a violência. Uma voz em off contesta que atacar propriedade privada não é violência. Corta para jovens sendo espancados pela polícia. O protesto acaba com a morte de um dos manifestantes. Ouvem-se os gritos “polícia assassina”. Nesta seqüência de abertura, Surplus já apresenta sua idéia: a sociedade de consumo está transformando o mundo num verdadeiro caos.
As provas éticas se amparam em uma autoridade moral de quem apresenta ou conduz a narrativa. Em Surplus quem assume o papel de narrador na verdade é um entrevistado: o escritor John Zerzan. São suas idéias e argumentos que guiam o filme. É o único entrevistado em primeiro plano com um fundo neutro. Suas falas aparecem constantemente (em off ou não) e as imagens as confirmam ou defendem.
Uma seqüência alterna a performance bastante neurótica de Ballmer, um executivo da Microsoft, diante de uma platéia e a de Fidel perante seus compatriotas. O público de ambos responde hipnotizado, seja cumprindo roboticamente seus afazeres no escritório ou com palavras de ordem em Cuba.
A opção estética tomada por Surplus vai além de um mero suporte do tema, é também objeto de crítica do filme. Utilizando estratégias reflexivas como a ironia, a paródia e a sátira, o filme alude à sua própria forma (inspirada no videoclipe) porque pretende intensificar a consciência do espectador de como as linguagens estão imbricadas na construção de sentidos e valores do sistema capitalista. Desse modo, discutindo a linguagem como instrumento de uma ideologia e propondo um uso subversivo dela, o filme se defende de uma possível interpretação da apropriação dessas estratégias estilísticas como um mero floreio ou pastiche.
A “voz do inimigo” é usada apenas para ser rebatida, muitas vezes pelo próprio Zerzan. Entre os exemplos que podemos citar, há um pronunciamento de Bush afirmando que o objetivo do terrorismo é impedir o consumo seguido da réplica de Zerzan: terror é ser obrigado a consumir. Um clipe de imagens envolventes e impactantes confirma e apóia o escritor resolvendo a questão. Oposições como essa fazem pensar que há um certo confronto de idéias operando no filme, mas essa é uma falsa impressão porque ao invés de tensionar as opiniões diferentes, permitindo que o espectador também tome sua própria posição, Surplus impõe uma concordância.
Se as falas dos “donos do poder” são sempre contestadas (como Bush, Berlusconi, Bill Gates), as dos demais entrevistados em geral ratificam, comprovam ou exemplificam os argumentos colocados. Não há nenhuma entrevista que os tensione, contradiga ou desvie. Desta maneira, as pessoas participam mais como provas das asserções do filme e menos como sujeitos que elaboram o discurso fílmico junto ao enunciador.
A demonstração da complexidade da realidade (que um filme não consegue e nem deve esgotar) que aponte para um desejo de transformação social e a construção compartilhada de conhecimento entre o texto e seu espectador são fatores fundamentais para elevar o conceito de cinema político como algo além de um meio de passar uma mensagem.

RELÓGIO DA TERRA

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